Poemas 20|21

1 de outubro 2020 

Viajar pela leitura  

                                                               

Viajar pela leitura

sem rumo, sem intenção.

Só para viver a aventura

que é ter um livro nas mãos.

 

É uma pena que só saiba disso

quem gosta de ler.

 

Experimente!

Assim sem compromisso,

você vai me entender.

Mergulhe de cabeça

na imaginação


                Clarice Pacheco

 

 

21 de outubro

Outono                                                                

Tarde pintada

Por não sei que pintor.

Nunca vi tanta cor...

... Tão colorida!

Se é de morte ou de vida,

Não é comigo.

Eu, simplesmente, digo

Que há fantasia

Neste dia,

Que o mundo me parece

Vestido por ciganas adivinhas,

E que gosto de o ver, e me apetece

Ter folhas, como as vinhas.

 

                                         Miguel Torga

 

4 de novembro

Pássaro da Cabeça

 

Sou o pássaro que canta

dentro da tua cabeça

que canta na tua garganta

canta onde lhe apeteça

 

Sou o pássaro que voa

dentro do teu coração

e do de qualquer pessoa

mesmo as que julgas que não

 

Sou o pássaro da imaginação

que voa até na prisão

e canta por tudo e por nada

mesmo com a boca fechada

 

E esta é a canção sem razão

que não serve para mais nada

senão para ser cantada

quando os amigos se vão

 

e ficas de novo sozinho

na solidão que começa

apenas com o passarinho

dentro da tua cabeça.

                                                                           Manuel António Pina

 

18 de novembro

 

Impressão digital

 

Os meus olhos são uns olhos,
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não veem escolhos nenhuns.

 

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns veem lutos e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns veem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.

 

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

 

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

 

                                                                        António Gedeão

 

 

2 de dezembro

 

Chove. É Dia de Natal

 

Chove. É dia de Natal.    

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal,

E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.


                           Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

 

 

6 de janeiro

RECEITA DE ANO NOVO

 

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

 

Carlos Drummond de Andrade

 

20 de janeiro

É urgente o amor


É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

 

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

 

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

 

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

 

Eugénio de Andrade

 

6 de fevereiro

Não posso adiar o amor

 

Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob as montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas

 

Não posso adiar este braço

que é uma arma de dois gumes amor e ódio

 

Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação

 

Não posso adiar o coração.

 

                                António Ramos Rosa

 

20 de fevereiro

 

Erros Meus, Má Fortuna,

Amor Ardente


Erros meus, má Fortuna, Amor ardente 
Em minha perdição se conjuraram; 
Os erros e a Fortuna sobejaram, 
Que para mim bastava Amor somente. 

 

Tudo passei; mas tenho tão presente 
A grande dor das cousas que passaram, 
Que já as frequências suas me ensinaram 
A desejos deixar de ser contente. 

 

Errei todo o discurso de meus anos; 
Dei causa a que a Fortuna castigasse 
As minhas mal fundadas esperanças. 

 

De Amor não vi senão breves enganos. 
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse 
Este meu duro Génio de vinganças! 

 

                                     Luís Vaz de Camões, in "Sonetos" 

 

 

6 de março

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;

quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

                                Carlos Drummond de Andrade

 

20 de março

Primavera


Abre-te, Primavera!

Tenho um poema à espera

Do teu sorriso.

Um poema indeciso

Entre a coragem e a covardia.

Um poema de lírica alegria

Refreada,

A temer ser tardia

E ser antecipada.

Dantes, nascias

Quando eu te anunciava.

Cantava,

E no meu canto acontecias

Como o tempo depois te confirmava.

Cada verso era a flor que prometias

No futuro sonhado…

Agora, a lei é outra: principias,

E só então eu canto confiado.


 

                            Miguel Torga

 

6 de abril

Envelhecer

 

É bom envelhecer

Sentir cair o tempo,

magro fio de areia,

numa ampulheta inexistente!

Passam casais jovens

abraçados!…

As árvores

balançam novos ramos!…

E o fio de areia 

a cair, a cair, a cair…

 

                                        DIAS, Saúl, pseud.

 

17 de abril

 

25 de abril

 

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

 

              Sophia de Mello Breyner Andresen

 

 

 

 

 

 

 

1 de maio

Para fazer o retrato de um pássaro

 

Pinta primeiro uma gaiola

com a porta aberta

pinta a seguir

qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro.
Agora encosta a tela a uma árvore
num jardim

num bosque

ou até numa floresta.
Esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres…
Às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho
com o pincel.
Depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar.
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar.
Então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro.

 

(tradução de Eugénio de Andrade do original “Pour faire le portrait d’un oiseau” de Jacques Prévert)

 

 

 

15 de maio

Pequenas palavras

De todas as palavras escolhi água,

porque lágrima, chuva, porque mar

porque saliva, bátega, nascente

porque rio, porque sede, porque fonte.

De todas as palavras escolhi dar.

 

De todas as palavras escolhi flor
porque terra, papoila, cor, semente
porque rosa, recado, porque pele
porque pétala, pólen, porque vento.
De todas as palavras escolhi mel.

 

De todas as palavras escolhi voz
porque cantiga, riso, porque amor
porque partilha, boca, porque nós
porque segredo, água, mel e flor.

 

E porque poesia e porque adeus
de todas as palavras escolhi dor.

 

                                     Rosa Lobato de Faria

 

29 de maio

 Amigo

 

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!


    Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

 

5 de junho

 Ser Poeta

 

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

 

                                                        Florbela Espanca

 

 

Pelo sonho é que vamos


Pelo sonho é que vamos,

Comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?

Haja ou não frutos,

Pelo Sonho é que vamos.


Basta a fé no que temos.

Basta a esperança naquilo

Que talvez não teremos.

Basta que a alma demos,

Com a mesma alegria,

Ao que desconhecemos

E ao que é do dia-a-dia.


Chegamos? Não chegamos?

-Partimos. Vamos. Somos.


                                Sebastião da Gama