Poema da Semana

(Miguel Torga, 1907-1995)

Brinquedo

 

Foi um sonho que eu tive

Era uma grande estrela de papel,

Um cordel

E um menino de bibe.

 

O menino tinha lançado a estrela

Com ar de quem semeia uma ilusão;

E a estrela ia subindo, azul e amarela,

Presa pelo cordel à sua mão.

 

Mas tão alto subiu

Que deixou de ser estrela de papel.

E o menino, ao vê-la assim, sorriu

E cortou-lhe o cordel.

                                        Miguel Torga, Diário I

Poema da Semana

Cecília Meireles (1901 - 1964)

No ÚLTIMO ANDAR é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é mais longe:
custa muito a lá chega
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua, no terraço
fica tudo luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem,
para ninguém os maltratar,
no último andar.

De lá se avista o Mundo inteiro,
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:
no último andar.

                                            Cecília Meireles

Poema da Semana

(Manuel António Pina 1943 -  2012)

 

O pássaro da cabeça

Sou o pássaro que canta

dentro da tua cabeça,

que canta na tua garganta,

 que canta onde lhe apeteça.

 

Sou o pássaro que voa

dentro do teu coração

e do de qualquer  pessoa

(mesmo as que julgas que não).

 

Sou o pássaro da imaginação

que voa até na prisão

e canta por tudo e por nada

mesmo de boca fechada.

 

E esta é a canção sem razão

que não serve para mais nada

senão para ser cantada

quando os amigos se vão

 

e ficas de novo sozinho

na solidão que começa

apenas com o passarinho

dentro da tua cabeça.

                  

Manuel António Pina, in O pássaro da cabeça

Um Poeta/Um Poema

Fundo do mar

 

No fundo do mar há brancos pavores,

Onde as plantas são animais

E os animais são flores.

 

                         Mundo silencioso que não atinge                     

A agitação das ondas.

Abrem-se rindo conchas redondas,

Baloiça o cavalo-marinho.

Um polvo avança

No desalinho

Dos seus mil braços,

Uma flor dança,

Sem ruído vibram os espaços.

 

Sobre a areia o tempo poisa

Leve como um lenço.

 

Mas por mais bela que seja cada coisa

Tem um monstro em si suspenso.

                                                                                                                           Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 - 2004)

 Poema da Semana

(Luísa Ducla Soares 1939)

Na Máquina do Tempo

 

       Ah, se eu pudesse andar        

na máquina do tempo!

Quebrava esse horror

que é o despertador.

Só saía ao meio-dia

para a escola que abria

às oito da manhã,

sem ralhos da mamã...

 

Ah, se eu pudesse andar

na máquina do tempo!

Correndo em marcha atrás

caçava lá atrás

um dinossauro anão

que seria o meu cão.

Pois grande, francamente,

metia medo à gente...

 

Ah, se eu pudesse andar

na máquina do tempo!

Punha-me a acelerar

para só aterrar

em distantes planetas,

que estão por descobrir.

Aonde eu havia de ir...

 

Quando eu puder andar

na máquina do tempo,

hei de te convidar

para também passear,

E se tiveres coragem,

será longa a viagem...

Aonde queres vir comigo?

Vai já pensando, amigo...

 

            Luísa Ducla Soares, A Cavalo no Tempo - Civilização Editora 2003

Poema da Semana

Os amigos amei 
despido de ternura 
fatigada; 
uns iam, outros vinham, 
a nenhum perguntava 
porque partia, 
porque ficava; 
era pouco o que tinha, 
pouco o que dava, 
mas também só queria 
partilhar 
a sede de alegria — 
por mais amarga. 
                                                                             Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia"

 

Um Poema Por Semana

Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;

 

É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder;

 

É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.

 

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

                                                               Luís de Camões

Um Poema Por Semana

Seus olhos

Seus olhos – se eu sei pintar

O que os meus olhos cegou –

Não tinham luz de brilhar,

Era chama de queimar;

E o fogo que a ateou

Vivaz, eterno, divino,

Como facho do Destino.

 

Divino, eterno! – e suave

Ao mesmo tempo: mas grave

E de tão fatal poder,

Que, um só momento que a vi,

Queimar toda alma senti...

Nem ficou mais de meu ser,

Senão a cinza em que ardi.

 

Almeida Garrett , In Folhas Caídas

Um Poema Por Semana

O Vagabundo do Mar

 

Sou barco de vela e remo

sou vagabundo do mar.

Não tenho escala marcada

nem hora para chegar:

é tudo conforme o vento,

tudo conforme a maré...

Muitas vezes acontece

largar o rumo tomado

da praia para onde ia...

Foi o vento que virou?

foi o mar que enraiveceu

e não há porto de abrigo?

ou foi a minha vontade

de vagabundo do mar?

Sei lá.

Fosse o que fosse

não tenho rota marcada

ando ao sabor da maré.

É por isso, meus amigos,

que a tempestade da Vida

me apanhou no alto mar.

E agora

queira ou não queira,

cara alegre e braço forte:

estou no meu posto a lutar!

Se for ao fundo acabou-se.

Estas coisas acontecem

aos vagabundos do mar.

                 Manuel da Fonseca

Um Poema Por Semana

Canção

Tinha um cravo no meu balcão;

veio um rapaz e pediu-mo

– mãe, dou-lho ou não?

 

Sentada, bordava um lenço de mão;

veio um rapaz e pediu-mo

– mãe, dou-lho ou não?

 

Dei o cravo e dei um lenço,

só não dei o coração;

mas se o rapaz mo pedir

– mãe, dou-lho ou não?

Eugénio de Andrade

Um Poema Por Semana

Amigo

Mal nos conhecemos

Inaugurámos a palavra “amigo”.

 

“Amigo” é um sorriso

De boca em boca,

Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,

Um coração pronto a pulsar

Na nossa mão!

 “Amigo” (recordam-se, vocês aí,

Escrupulosos detritos?)

“Amigo” é o contrário de inimigo!

 

“Amigo” é o erro corrigido,

Não o erro perseguido, explorado,

É a verdade partilhada, praticada.

 

“Amigo” é a solidão derrotada!

 

“Amigo” é uma grande tarefa,

Um trabalho sem fim,

Um espaço útil, um tempo fértil,

“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!

                                         Alexandre O’Neill

Um Poema Por Semana

Sei um ninho.

E o ninho tem um ovo.

E o ovo, redondinho,

Tem lá dentro um passarinho

Novo

Mas escusam de me atentar:

Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino

A voar...

                         Miguel Torga

Um Poema por Semana

Janeiro é um mês, quase inteiro,

de frio, chuva, nevoeiro.

Mas há um sol em janeiro,

um sol discreto e fagueiro,

em raras manhãs de azul,

que sorri por entre o frio

e acende um pequeno braseiro

no coração mais sombrio.

                                            João Pedro Mésseder

Um Poema Por Semana

Chove. É dia de Natal. 

Lá para o Norte é melhor: 
Há a neve que faz mal, 
E o frio que ainda é pior. 

E toda a gente é contente 
Porque é dia de o ficar. 
Chove no Natal presente. 
Antes isso que nevar. 

Pois apesar de ser esse 
O Natal da convenção, 
Quando o corpo me arrefece 
Tenho o frio e Natal não. 

Deixo sentir a quem quadra 
E o Natal a quem o fez, 
Pois se escrevo ainda outra quadra 
Fico gelado dos pés. 


Fernando Pessoa

Um Poema Por Semana

Barca Bela

          

Pescador da barca bela,

Onde vais pescar com ela,

Que é tão bela,

Ó pescador?

                                                          

Não vês que a última estrela

No céu nublado se vela?

Colhe a vela,

Ó pescador!

 

Deita o lanço com cautela,

Que a sereia canta bela...

Mas cautela,

Ó pescador!

 

Não se enrede a rede nela,

Que perdido é remo e vela

Só de vê-la,

Ó pescador!

 

Pescador da barca bela,

Inda é tempo, foge dela,

Foge dela,

Ó pescador!

                                                             Almeida Garrett

Um Poema por Semana

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

 

É urgente destruir certas palavras

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,                       

muitas espadas.

 

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

 

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

 

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

                                                            Eugénio de Andrade